Vive-se a negação do óbvio e o nada é eleito como o autor de tudo.
Talvez o desejo de amar não seja o nosso maior problema nem o esforço que fazemos para compreender o próximo – em pequenos exercícios de tolerância – ou a gratidão crescente, à medida que nos conscientizamos sobre a vida como o mais belo presente concedido pelo Criador.
Talvez sorrir à toa não seja o meu maior defeito nem gostar de cantar em plena madrugada, na penumbra da sala, para celebrar o silêncio da noite...
Talvez o problema seja apenas o caminho para a solução, e a graça da vida esteja mesmo nas dificuldades todas que nos conduzem à luta genuína e santa que fortalece o espírito para o combate no Bem.
Quem sabe se tudo o que é visto, hoje, como empecilho para a felicidade não seja exatamente o estreito conduto que nos protege do erro e do desvio desse desiderato?
Tudo aqui é tão passageiro que nunca se sabe ao certo quando se está no princípio ou no fim; tampouco se pode afirmar, com toda certeza, quando é a hora exata de chegar ou partir, interromper ou recomeçar...
As coisas mudam num abrir e fechar de olhos por aqui. Quem perdeu, de repente, pode ganhar; quem está por baixo, um dia, pode subir; e o que chegou ao mais elevado posto, a qualquer momento, pode despencar.
Atualmente, o que mais se vê no mundo é o jogo sujo, a relação abjeta da troca de favores, o discurso pródigo de palavrões, a conduta dissimulada e marginal – desde o menor ao maior destaque social. Tudo o que se busca é a droga fácil, o ócio como ofício, a malandragem por profissão...
Vive-se a negação do óbvio, e o nada é eleito como o autor de tudo: o homem criando o próprio caos em que se permite mergulhar.
Os intelectuais de plantão andam tão atônitos com o infinito desconhecido de si mesmos – atolados que estão na própria arrogância e no orgulho de ser quem são –, que mal conseguem enxergar um palmo à frente do nariz, embora apontem caminhos e façam prosélitos. São cegos que guiam cegos, como diria o Mestre de todos os tempos.
Quanto aos humilhados, os esquecidos da “sorte”, aqueles que seguem em frente mirando o Mais Alto, jogando pra’diante o próprio desalento e colhendo as rosas do caminho apesar dos espinhos, para mim, são eles os verdadeiros pilares do mundo.
Escrevem verdadeiros tratados sobre coisas simples e compõem poemas de rara beleza com os gestos mais singelos, nascidos do coração, porque são doutores na arte de viver.
Para mim, são esses os grandes do mundo. Podem não trazer a fluência na fala nem a desenvoltura na ortografia, mas são eloqüentes em suas atitudes e dão verdadeiras lições de amor e fé.
Já os letrados do mundo, os que detêm o poder e os que ditam as regras do jogo, muitas vezes, são analfabetos nas matérias do coração. Argutos no saber científico e na habilidade política, mal soletram o bê-á-bá do homem de bem.
Enchem páginas com suas pesquisas e seus grandes feitos, mas são incapazes de olhar nos olhos de um mendigo e perscrutar-lhe a alma dorida, que, por trás da obscuridade de suas vestes, pode ser muito mais luminosa que a sua...
Ah, tolos que somos, valorizando tantos desvalores! Curvamo-nos diante de disfarçados bezerros de ouro e não nos damos conta da terrível cegueira que nos empata a visão. Aonde queremos chegar com tamanha insensatez?
“Onde está o teu coração, disse O Maior entre nós, ai está o teu tesouro!”. Mas nós continuamos às cegas, afoitos e aflitos, fingindo também não ouvir.
Até quando o entorpecimento dos sentidos e a negação da intuição? Até quando a manipulação das consciências em detrimento da verdade? Até quando os olhos fechados para o sol que ascende além do estreito horizonte em que nos limitamos? Até quando o grito amordaçando a justiça, a ignorância cerceando a liberdade, o egoísmo sufocando o amor e as diferenças sendo maiores do que a solidariedade?
Até quando, meus irmãos, até quando?
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