terça-feira, 19 de agosto de 2008

É doce morrer no mar...

“Sentava-se à cadeira de balanço, no terraço de sua casa, e começava a pensar nas coisas boas da vida para buscar inspiração”.

“É tão tarde, a manhã já vem. Todos dormem, a noite também. Só eu velo por você, meu bem. Dorme, anjo, o boi pega neném...”, cantarolei, inúmeras vezes, como a mais bela canção de ninar que eu já ouvi: uma filha de cada lado, o olhar lançado ao infinito, no vaivém da cadeira de balanço, fazia-as dormir.

Não foi na voz de minha mãe nem da irmã Ana, tampouco na rouquidão crônica de Maria, que eu a escutei pela primeira vez. Foi gravada por Roberto Carlos, em um vinil que eu não me lembro como me chegou às mãos, em meados dos anos oitenta, quando, adolescente, eu nem imaginava ainda que, um dia, viria a ser mãe de duas lindas quão adoráveis meninas.

Copiei numa folha de caderno, ouvi-a repetidas vezes, na velha vitrola da casa de Canhotinho, até aprender a cantá-la. O objetivo não era outro: embalar o sono das minhas filhas quando elas chegassem. Sim, porque sempre fora apaixonada por meninas e tinha a forte impressão de que seriam um par as minhas...

Intuições à parte, só vim tomar conhecimento de que aquela composição era de autoria do baiano Dorival Caymmi e que fora composta para a filha Nana – na mesma cadeira em que ele ninara seus outros filhos, muitas vezes –, alguns anos depois. Eu, que já gostava da canção, achei-a ainda mais bonita.

Caymmi sempre me pareceu uma figura encantadora, com uma baianidade à flor da pele (algo bem diferente do que se entende, hoje, por ”baianidade”), que se inspirava nas coisas simples da cultura e do cotidiano de sua gente e tinha a fama de ser afeito a longos descansos na rede, como um bom baiano.

Se era lenda ou não, eu não sei, mas confesso que gostava da imagem que me passava esse artista pai de família, que, com seu sotaque arrastado, convidava todos a conhecerem as belezas da sua terra com a mesma simplicidade com que levava a vida. “Você já foi à Bahia, nêga? – perguntava ele. Não? Então, vá! Então vá!! Então vá!!!”

Contou, certa vez, numa entrevista a Regina Casé, que pegava o violão, sentava-se à cadeira de balanço, no terraço de sua casa, e começava a pensar nas coisas boas da vida para buscar inspiração. “As coisas ruins, disse, eu deixo pra lá!”.

Talvez por isso soubesse descrever como ninguém, numa sensualidade ingênua, “o que é que a baiana tem”; também cantar a morte do pescador com a rara beleza de quem compreendia que, para aqueles que realizam um dos ofícios mais antigos do mundo, morrer no mar deveria ser como uma doce entrega ao velho companheiro que, tão generosamente, os ajudava a alimentar a família e ganhar o “pão de cada dia” sem mágoas ou ressentimento.

Era uma criatura que acreditava, no alto dos seus noventa anos – como disse na entrevista –, que a pessoa quando morre vai para um lugar bonito e ditoso, como o céu. “Todos!”, enfatizou generoso e bonachão, como não poderia deixar de ser. “Mas tem que abrir mão das outras coisas”, acrescentou com sabedoria, consciente de que, na vida, para ganhar é preciso saber perder.

Imagino, então, que, pelo exemplo de simplicidade que esse homem sensível deixou aos seus nesses 94 anos, deve ter sido com esse mesmo sentimento de desprendimento e gratidão – embora a saudade natural de quem fica – que a bela família que Caymmi formou aqui, na Terra, tão harmoniosa quanto as suas composições, despediu-se dele, no último sábado, ao ver o patriarca se entregar, sem apegos ou mágoas, às ondas da vida em outra dimensão.

Morreu dormindo, como não poderia ser diferente. Provavelmente, ao som de Nana cantando Acalanto, deixando-se embalar pelas águas mornas do mar da Bahia, que o conduziam, com certeza, a paisagens tão belas quanto as que ele desenhou em vida, através de suas músicas; só que, dessa vez, com cores bem mais vivas, pintadas com as tintas da generosidade do Criador – imagem que tanto guardava no coração...

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