quinta-feira, 18 de setembro de 2008

O exercício do amor

“Aos homens cabe, sim, o urgente exercício de dar a outra face: ante o clamor da vida, a prática do amor. Mais nada”

Foi através do site do Estadão, no dia 2 de agosto deste ano, que eu tomei conhecimento do falecimento daquela que se tornou o símbolo nacional da luta pela vida: Marcela de Jesus Ferreira, filha de um casal de agricultores do interior paulista, que veio ao mundo no dia 20 de novembro de 2006 e, superando todos os prognósticos médicos, teve uma vida longa de um ano, oito meses e doze dias.

A anencefalia da filha de Cacilda Galante Ferreira foi detectada no quinto mês de sua gestação, mas a mãe – cristã de fé robusta e inabalável – nem pensou em abortar e ainda fez questão de colocar no nome da filha a insígnia daquele que verdadeiramente representa o Criador na Terra: Jesus de Nazaré.

Serena, como desde o nascimento da sua terceira filha, Cacilda despediu-se de Marcela beijando a mãozinha da filha de Deus, que, humildemente, lhe pediu guarida por quase dois anos. Certa de ter cumprido a tarefa que lhe foi confiada, a mulher disse ao repórter Brás Henrique: "Deus quis a pedra, a jóia, que eu estava lapidando com muito carinho, e veio buscá-la. Cuidei dela até quando Deus quis”.

Não muito distante de nós, a alagoana Letícia de Souza Rodrigues, filha adotiva de Márcia e Jorge (sobre quem escrevi uma ampla matéria que foi publicada em O Jornal, no dia 04 de novembro do ano passado), está prestes a completar 11 anos. Caso absolutamente atípico na Literatura Médica, a menina – que tem apenas o tronco cerebral e água, onde deveria constar o cérebro – foi diagnosticada como portadora de hidroanencefalia há poucos anos.

Igual a Marcela, cuja médica, Márcia Beani Barcellos, declarou ter levado quase um ano para diagnosticar que ela não se enquadrava nos casos clássicos de anencefalia, Letícia interage com a família e com o ambiente, tendo até reagido à canção que eu cantei para ela no dia da entrevista: a mesma que eu cantava para as crianças do berçário da Creche Adoção Rubens Colaço, há cerca de 10 anos, quando a menina era apenas um bebê de seis meses, com hidrocefalia, que havia sido abandonada pela mãe biológica.

Tratada com imenso carinho pelos pais e pela irmã Janaina – que não desgrudou da menina desde o dia em que a conheceu, aos 14 anos –, eles reconhecem que Letícia trouxe vida e alegria à família, e que serão eles, isso sim, que ainda ficarão devendo a ela - como diz o pai - por todo o bem que tem lhes proporcionado.

Tanto nesse como nos inúmeros casos que encontrei quando pesquisava sobre o tema para escrever a matéria, as mães, até mesmo aquelas cujos filhos tiveram apenas algumas horas de existência, são unânimes em afirmar que a criança mudou a sua forma de compreender a vida.

Quem somos nós, então – criaturas tolas, orgulhosas e envaidecidas com a própria intelectualidade, que nos embaça a visão ante a simplicidade da vida –, para julgar os desígnios de Deus, quando permite que nasçam entre os ditos “perfeitos” seres com alguma deficiência física ou mental, que, ao nosso entendimento limitado, parecem trazer consigo uma incompatibilidade natural com a vida”?

Se a eles não serve a experiência, provavelmente Deus se utiliza dela para amolecer os corações humanos e lhes ensinar a lição do amor ao próximo, na qual estamos todos bem deficitários. Não é a isso que nos convida, ainda hoje, o Mestre que veio à Terra para que os homens tivessem vida em abundância? Como esperar essa plenitude, imputando aos filhos de Deus que nos batem à porta a pena de morte através da eugenia e do aborto?

Ou será que a vida é filha do Acaso e nós somos os “frutos bons” desse Nada, que desenvolve a existência de forma aleatória? Se a própria natureza se encarrega de destruir os “monstros” que cria, como dizem alguns, então por que não deixamos que ela mesma decida o que fazer das vidas que já nascem “predestinadas” à morte? Aos homens cabe, sim, o urgente exercício de dar a outra face: ante o clamor da vida, a prática do amor. Mais nada.

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