“A minha avó conhece todos os mistérios: [...] disse que tristeza não é desalento da alma, é duende que ataca ao encontrar a porta aberta do desgostar de si mesmo. O remédio é recolher-se no silêncio e desamarrar um por um os cadarços do egoísmo, até os pés poderem andar na direção do outro. [...] Falou que sabedoria é pensar com os pés; a cabeça gosta é de sonhar, mas os passos tecem a existência. Quem se cansa de andar abrevia a vida, quem prossegue afasta a morte para depois. [...] Ela é cheia de segredos: contou que peixe se tempera com laranja, e rabanete se come no final da refeição, como fazia Sócrates, para facilitar a digestão. [...] Disse que nada cresce direito se, de quando em vez, não é podado. Falou que no início do mundo não havia vento, só aragem. Um dia o ar se sentiu tão sufocado por nossas fumaças que danou a correr. [...] Minha avó é cheia de mistérios: contou que todos os dias, ao entardecer, Deus vem namorá-la; chega tímido, com muito dengo, até ela abrir o coração. Então ele entra e faz muita festa. Disse que vive no descuido da idade porque Deus anda doente de paixão por ela, o que a faz viver esquecida de morrer.”
(A arte de semear estrelas - Frei Betto)
@homenagem ao Dia Internacional da Mulher.
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