Que me desminta o leitor se eu estiver enganada, mas nada amedronta mais uma criança do que a escuridão. Esse é um medo ancestral que por vezes acompanha a criatura até a fase adulta. O que é compreensível, uma vez que ativa no indivíduo uma série de outros temores guardados no inconsciente. O escuro encerra o desconhecido, logo, ali tudo é possível.
Da infância no interior ainda guardo lembrança dos pavores que me atormentavam no meio da noite. E mesmo durante o dia, como na ocasião em que, atendendo ao pedido de minha irmã, que me mandara “ver se ela estava na esquina” (provavelmente para se ver livre do abuso da caçula), me deparei com um enorme vulto seguindo meus passos na mesma velocidade com que eu fugia dele.
Não contei história: larguei o grito pra cima, pedindo socorro a quem me pudesse ouvir. Como era pequena e tinha um amplificador no abdômen, como diz um amigo meu, logo acorreram todos para ver o que estava acontecendo. Foi quando meu pai me abraçou sorrindo (meu coração a pular pela boca) e mostrou que o vulto que me perseguia não era mais do que minha sombra, nascida com a luz da manhã.
Há alguns dias, hospedada na casa de Ana (essa mesma irmã), no interior de Pernambuco, as lembranças da infância me voltaram à mente com a conversa da primeira noite. Estávamos olhando o céu, salpicado como um véu de noiva, quando se aproxima um morador, puxando conversa. Perguntou se já sabíamos que certo rapaz da redondeza estava “correndo bicho”, numa outra linguagem, virando lobisomem.
Questionado sobre a veracidade do fenômeno, o “ninja” nos contou sobre a vez em que fora perseguido por uma dessas criaturas, tarde da noite, com quem lutara bravamente. “Dias depois – afirmou ele, convicto do que dizia – o cara saiu contando na rua que tinha brigado comigo e que só não me pegou por que eu pulava feito um macaco” (estava explicado o apelido). Verdade ou não, passei os dias seguintes perguntando às pessoas o que pensavam sobre o assunto.
Descobri uma série de outras estórias, inclusive a de Zé Mochila (a mais famosa delas) – um senhor de quase oitenta anos, residente em Cupira, que, na juventude, corria bicho. O mais incrível é que ele se virava em qualquer tipo de animal: cachorro, gato, cobra, porco, e até mesmo formiga. Dizem que o receio de sua mãe era que matassem o filho dela. Pisando no inseto, por exemplo.
Não que eu seja corajosa, ou que duvide da honestidade dos que me contaram (pelo contrário!), mas rir de tudo isso agora é como “ir à forra” contra um velho inimigo da infância: o medo que me fazia crer que qualquer latumia durante a madrugada era alguém correndo bicho rua a fora.
Na outra noite, chamei minha filha para pegar comigo a toalha de banho que estava estendida no quintal. A muito custo, ela assentiu, mas, quando percebeu que teria que atravessar o lado escuro do terraço, estancou aterrorizada, deixando-me só. Eu tinha duas opções: ou desistia também, deixando que o medo fosse maior do que eu, como fazia na infância, ou aceitava o desafio e enfrentava o velho adversário, mostrando a mim mesma que sou maior do que ele.
Escolhi a segunda. Avancei um pouco e parei, respirando profundamente, sem dar espaço a pensamentos ruins. Esperei os olhos se acostumarem e fui identificando cada coisa à medida que seguia, devagarzinho, até o quintal. Lá me aguardava uma grata surpresa: um céu cintilante de estrelas, bem atrás da goiabeira! Sorri encantada, peguei a toalha e voltei – feliz por ter enfrentado um outro vilão da infância. Descobri que o escuro também guarda tesouros, mas é preciso ter coragem de passar por ele.
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