Era sábado de Zé Pereira e eu havia sido escalada para trabalhar na cobertura do Carnaval preparado pela prefeitura para os poucos foliões da cidade que não quiseram (ou não puderam) viajar para as praias do sul, ou do litoral norte do estado, que têm mais tradição em folia e animação carnavalesca do que a capital.
Chateada, estava a um canto do camarote – ocupado por autoridades emergentes (absolutamente desconhecidas, diga-se de passagem) –, enquanto esperava começar o desfile das duas únicas escolas de samba que iriam se apresentar aquela noite (e que já contava um atraso de quase duas horas). Foi quando divisei, no meio da turba, um grupo de mulatos – que me perdoem os preconceituosos, mas não conheço outro nome que identifique melhor a “cor” surgida da miscigenação entre brancos e negros – que dançavam como nenhum outro, em alegria e molejo, ao som do pagode. Eram três rapazes e três moças, cada um com sua beleza e brilho próprios.
Um casal, no entanto, me chamou especial atenção. Ele, mais escuro, era um tipo alto, forte, charmoso e muito bonito, que se destacava dos demais. Ela, pequena, tipo mingnom, tinha um corpo generoso nas formas, com carnes firmes e bem torneadas, e também chamava a atenção de quem a visse dançar, mesmo usando roupa discreta para a ocasião: vestia uma blusinha vermelha, de lycra, com uma calça jeans cintura baixa e uma sandalinha sem salto.
A moça, que eu vou chamar Daiane, parecia gostar dele, pois não saia do seu lado enquanto dançavam – todos soltos – em um pequeno círculo. Mas não dava sinais mais evidentes do que umas poucas e rápidas olhadas, embora estivesse, notadamente, atenta aos movimentos do companheiro. Já o rapaz, que receberá o codinome de Toni, raramente a olhava nos olhos. Mirava-a sempre do alto, ou, furtivamente, pelo canto do olho, como se não conseguisse encará-la de frente. Falava com a moça, em diálogos curtos, fitando sempre a linha do horizonte. E só então quando um outro a pegava para dançar é que ele rapidamente a puxava para si, trocava alguns passos com ela, e depois a largava de novo.
Até o fim do desfile eu não pude definir os reais sentimentos de Toni por Daiane, mas ficaram assim, nesse chove-e-não-molha, a noite toda. Até mesmo quando deram um show de afinidade e sintonia, dançando, juntinhos, Brasileirinho, de Waldir Azevedo e Pereira Costa, em ritmo de pagode.
Parecia haver algum entrave entre eles, que eu não conseguia definir...
Só sei que foi tanta a minha torcida que, ao final do desfile da segunda, e última, escola (por volta da meia noite), o casal saiu dançando lado a lado, dedos entrelaçados, acompanhando com movimentos instintivos o samba-enredo da agremiação.
Num dado momento, passando pela mesma linha em que eu me encontrava (pois já estava na avenida, a pegar alguns closes), nossos olhos se encontraram – os meus e os de Daiane –, com certo ar de cumplicidade. E era como se ela soubesse que eu os havia observado o tempo todo e estivera torcendo, a cada instante, por um final feliz.
Sorriu-me um ‘sorriso monalisa’, e se foi, acompanhando o rapaz. Mas, antes de tirar os olhos dos meus, parecia segredar que também estivera me observando enquanto eu trabalhava todas aquelas horas, por um sentimento de solidariedade talvez.
Mas seu olhar, brilhante e enigmático, parecia querer me dizer algo mais...
Talvez apontasse para a fugacidade dos sentimentos humanos, nessa época do ano, e sabiamente me alertasse para não ficar frustrada caso aquela história terminasse ali mesmo, na primeira noite do Carnaval de 2007, ou não durasse mais do que os quatro dias de festa.
“Porque toda história de amor dura o tempo necessário para se tornar imortal”, disseram os olhos de Daiane, no ínfimo instante em que me colocaram em foco, faiscando uma sabedoria antiga.
E nos despedimos sem nenhuma palavra. Até o próximo carnaval, talvez...
E foi assim, acompanhando esse “Romeu e Julieta” contemporâneo, que eu consegui vencer o tédio daquela noite, enquanto meus chefes se divertiam com os seus em algum lugar bem mais agradável.
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