“Vem, Alice!” Ouvi alguém falar do meio da turba. “Vamos, Alice!” Chamou outra voz de dentro de um quarto. E mais algumas vezes ouvi aquele nome ser pronunciado em forma de apelo. Fiquei curiosa. Começava a procurar com os olhos, quando vi aparecer, à frente do grupo que vinha animado, uma mulher pequena, de meia idade, um meio sorriso na face. Aí perguntei à pessoa mais próxima: “Aquela é Alice?” E a outra respondeu com um menear de cabeça.
Sim, aquela era Alice.
Olhar vago, a mulher parecia não saber exatamente para onde estava indo. Não expressava qualquer sentimento aparente: nem desagrado, nem satisfação. Apenas seguia, tentando acompanhar o ritmo dos que se aproximavam.
Cabelos curtíssimos, um vago na boca, a bata bege de todos os dias, Alice mora ali. Ao que parece, todos a conhecem. O que não significa necessariamente que seja uma pessoa popular; talvez indique apenas que vive naquele lugar há muito tempo.
Provavelmente, Alice nem se recorda do dia em que chegou àquela casa. A família talvez nem se interesse mais, como acontece com muitos. Mas o tempo de Alice é outro. A vida dela é um contínuo agora, uma roda-viva de uma eterna vida-vivida-a-esmo. Os que trabalham lá sabem disso.
Clínica de saúde mental, hospital psiquiátrico, hospício, não importa o nome que se dê a moradas como essa: o endereço denuncia os seu hospedes, seja pela construção arquitetônica, pelo uso de psicotrópicos, pelas vestes comuns dos internos, pelo ar ausente deles ou pela equipe de homens e mulheres de branco que coordenam os trabalhos.
Em lugares assim, não há como negar: a maioria tem problemas mentais.
Não sei bem por que, mas a loucura é algo que me sensibiliza. Acho muito tênue a linha que separa o equilíbrio da insanidade e penso que se deve estar sempre vigilante para não ultrapassá-la, seja de que forma for, porque nunca se sabe se haverá um caminho de volta. Gosto de estar consciente nas minhas ações. Por isso, prefiro evitar aquele primeiro gole, o primeiro trago, o primeiro cheiro, aquela pilulazinha... Porque nunca se sabe se será também a última vez.
Mas é claro que há formas bem mais complexas de loucura, que nascem nos labirintos do inconsciente.
Lembro de quando morava ao lado de uma dessas clínicas, no bairro da Boa Vista, em Recife. Era comum acordar no meio da noite pelos gritos dos internos sendo submetidos, provavelmente, ao tratamento agressivo dos eletrochoques. A janela do meu quarto dava exatamente para os fundos da clínica e eu costumava observá-los em seu passeio sem rumo, caminhando à margem da vida, dias a fio.
Graças à contribuição fantástica da psicanalista alagoana Nise da Silveira, – que encontrou na terapêutica ocupacional uma forma de tratamento para esses pacientes e deu origem, em 1952, ao Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, despertando o interesse científico para a os trabalhos artísticos realizados por eles –, a vida dessas pessoas melhorou muito.
Atualmente, “os loucos” já não vivem mais tão à margem da sociedade. Eles são vistos e, de alguma forma, compreendidos através da arte que produzem. A qualidade de vida também melhorou consideravelmente.
E foi num dia assim, em que se podia ver a festa da vida em algum canto dos semblantes impassíveis albergados no Hospital Portugal Ramalho, que eu conheci Alice – que preferiu ficar sentada no banco, vendo a banda passar, literalmente.
Foi fotografando o grito de carnaval do bloco Maluco Beleza que, este ano, comemora suas 15 primaveras, que eu ousei me ausentar, momentaneamente, do insano mundo em que vivemos para ingressar no que há de maravilhoso no mundo de Alice.
2 comentários:
alice não mora mais aqui.
já morei na tamarineira.
abraços perturbados
penso que aqueles que têm o espírito livre, amigo, trazem algo de Alice dentro de si...
Um abraço.
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