terça-feira, 3 de julho de 2007

Carta de um povo de algum lugar

Escrevo esta carta, a quem interessar possa, de um reino encantado que há dentro e fora de mim. Lugar que não me pertence propriamente, mas que recebe e acolhe como se fosse a minha terra natal. Recanto que não é meu nem de qualquer um outro Ser que julgue possuí-lo, embora esteja sob o usufruto de minha família.

Porque a natureza, em essência, pertence a si mesma e a mais ninguém.

Escrevo de um lugar rodeado de serras e lençóis d’água – curvas sinuosas que separam o céu e a terra numa paisagem verde de encher os olhos. Lugar de uma beleza tão exuberante que não deixa a menor dúvida ao coração de quem o vê pela primeira vez: Deus habita aqui!

O coaxar dos sapos, o cricrilar constante de grilos e cigarras compõem uma música ininterrupta e diálogos insuspeitáveis. Nesse ambiente, onde até meus pensamentos se coadunam com a grandiosidade da obra divina, tudo em mim silencia como uma oração e se reconhece parte de um todo.

Escrevo já com certa dificuldade, pois a luz se despede cedo nesses horizontes e apenas as chamas de uma fogueira é que iluminam os meus pensamentos, que se negam a dormir com as réstias do sol. Nesse instante, todo o meu Ser vibra, luminescente, inspirado pela força desse lugar que amanhece e anoitece como um grande espetáculo.

Tudo em mim reverencia o Ser Maior que rege e habita cada criatura. “Viver é um grande presente”, gorjeia o pássaro. “Amar a vida e saber levá-la com paciência e humildade é sinal de sabedoria”, me ensina o córrego.

Então anote aí o que eu digo (porque o faço com a alegria de uma criança frente a nova descoberta): viver o presente liberta a alma. O passado e o futuro entorpecem os sentidos e aprisionam, afastando-a de si mesma e do que é real.

A vida aqui corre lenta e fria. O dia começa cedo, entre a neblina e os silvos da noite, e se despede um pouco depois do entardecer. As pessoas são calorosas e receptivas, embora reservadas. As crianças sorriem e acenam para tudo, mesmo que timidamente. São coradas e parecem felizes, feito flores do campo.

Os mais velhos têm uma confiança irrestrita no Criador: vivem “como Deus quer”! E os mais moços sentem sede do novo. Muitos vão à busca nas grandes cidades, onde alguns ficam, verticalizando as favelas. Outros voltam e constituem família, tocando a vida de uma forma bem parecida com a de seus pais.

O que os diferencia é o tamanho de seus sonhos e a profundidade de suas raízes...

Mas tudo aqui é bom e puro, e enche a alma de quem sabe ler o que está escrito nas entrelinhas. Para uns este recanto é um refúgio, um pedacinho do Paraíso. Para outros, o pedaço de chão que lhes cabe e serve de lar. Para mim é um grande encontro comigo mesma – a oportunidade de entrar em contato com o que há de mais sagrado na obra de Deus: a alegria de viver.

Porque, como bem diz Rainer Maria Rilke, em Cartas a um jovem poeta, “toda a beleza nos animais e nas plantas é um forma tranqüila e duradoura de amor e anseio”. E eu posso dizer que em mim há uma solidão habitada por noites de chuva e frio, como aqui. Mas também por dias ensolarados com desenhos sinuosos de um verde luminescente e flores coloridas, separando o céu do chão.

E é por isso que ora coloco em ação esse desejo tolo que me deu de falar sobre o silêncio que me invade, vez por outra, quando estou aqui e da paz que reina nesse lugar, através de uma carta simples e despretensiosa. Escrevo como quem manda notícias de um povo querido e distante... Como quem se expressa em um dialeto antigo, mas perfeitamente compreensível feito os desenhos rupestres... Como quem escreve um poema singelo... Como quem fala de amor.

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