quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Antes do anoitecer...

Regaria as plantas do jardim, brincaria com o cachorro e iria preparar o café...

Acordou cedo aquele dia e levantou-se com a calma de quem ainda dispunha de um pouco mais de doze horas para se despedir. Mirou-se no espelho, ajeitou os cabelos, prendendo as madeixas brancas com uma presilha de cada lado, e foi fazer o café. Abriu a torneira, encheu o bule e colocou a água para ferver. Pela janela da cozinha, um tanto reflexiva, observou a paisagem nevoenta sem mágoa ou melancolia; apenas a discreta nostalgia de quem olha um lugar querido pela última vez...

Diante da cena que abre o belíssimo longa-metragem de Marleen Gorris, “A Excêntrica Família de Antônia”, uma co-produção entre Holanda, Bélgica e Inglaterra, eu comecei a pensar sobre o que faria no meu último dia de vida, se tivesse conhecimento da data com antecedência. Decidi que queria que ele fosse como o de Antônia: um dia comum; igual a tantos outros já vividos por mim.

Eu acordaria cedo, olharia a paisagem da janela, aproximaria o corpo do parapeito, espichando a cabeça para fora até sentir a brisa me acariciar de leve; olhos fechados, agradecendo a Deus por mais um dia, buscaria com os ouvidos o canto de algum pássaro. Passaria pelos quartos para ver as meninas dormindo, se ainda estivessem comigo, e andaria pela casa descalça para não fazer barulho. Regaria as plantas do jardim, brincaria com o cachorro e iria preparar o café...

Alguém pode estar achando meio mórbida essa conversa, logo na primeira semana depois do carnaval. Ao contrário, penso que seja uma reflexão bem apropriada para iniciar o ano – já que tudo só engrena mesmo depois da festa de Momo –, principalmente, se houver um propósito de que este seja um ano bom. Pois não há nada melhor do que considerar a brevidade da vida para aproveitar bem os meses, os dias e as horas de que ainda dispomos junto aos nossos.

Porque temos o péssimo hábito de só dar valor às coisas depois que as perdemos. Ou não é assim com você, amigo leitor? Você pode afirmar que não sente falta de algo que já possuiu? Uma saudadezinha mínima que seja de alguém, ou algo, que você não soube aproveitar como deveria? Que se tivesse nova oportunidade, não tentaria, pelo menos, fazer diferente? Talvez uma palavra, um sorriso, um aceno, um abraço que deixou de dar... Um minuto a mais com alguém, ou naquele determinado lugar?

Estou lendo um livro em que um judeu, que vive escondido no porão da casa de estranhos, em uma cidadezinha nazista da Alemanha de Hittler, em plena II Grande Guerra, se arrepende amargamente e tem pesadelos todas as noites por causa de um único gesto que não teve coragem de fazer. Seu desejo de viver era tão grande que – menor do que o medo que sentia da morte –, não pensou duas vezes na hora em que lhe foi proposto fugir ao Holocausto. Ante o amigo que lho viera buscar (embora tivesse acabado de dizer que jamais abandonaria os seus), o rapaz de vinte e quatro anos deixou a família, cujo futuro era incerto, e acompanhou o amigo apenas com a roupa do corpo, sem sequer olhar para trás. Uma última olhada. Rápida que fosse para gravar na memória. Nada.

Outro dia, ao ver a irmã nos encher de beijos e ouvir o meu costumeiro “Vai com Deus!” antes de descer com o Ping para o passeio matinal, Maya comentou, achando graça, que, aqui em casa, independente do que vamos fazer, temos o hábito de nos despedir umas das outras como se fôssemos viajar. Sabendo muito bem o que dizia, respondi: - E não é melhor assim?

Não seria melhor se nós aproveitássemos mais as oportunidades de darmos um beijo, um abraço ou dirigirmos palavras amorosas aos nossos entes queridos? Se compartilhássemos com eles mais momentos felizes? Se desejássemos que se fizessem acompanhar de Deus sempre?... Afinal, quem poderá dizer, com precisão, o que vai nos acontecer nas “cenas dos próximos capítulos”?

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