terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Como um breve sonho...

Como se fosse possível voltar no tempo e me encontrar novamente à escrivaninha do quarto da sala, para mergulhar a pena na tinta fresca e depositar sobre o papel amarelecido de minha vida novas impressões – igual aos homens da caverna, que não puderam conter o impulso de comunicar à posteridade as práticas de uma Era que se perderia no tempo –, eu te escrevo.

Porque tudo o que trago aqui dentro de mim há muito já esperava o momento certo de deixar-me para ir ao teu encontro. Porque tudo o que te entrego agora encontra uma perfeita ressonância dentro de ti, como a certeza que cada molécula da água que forma os rios traz, involuntariamente, de que o seu destino é chegar ao mar.

Escrevo-te porque já não posso guardar o que não me pertence, mas a outrem. Não me pertencem as palavras nem os sentimentos. Não me pertencem os adjetivos que o meu parco vocabulário possa enumerar ao teu respeito. Por isso, não há nada que eu te diga, aqui e agora, que já não te seja, de alguma forma, velho conhecido. Os desenhos de tinta que ficarão grafados sobre o papel vão apenas legitimar o tesouro que já trazes em teu coração...

Toma! É teu o amor incondicional que sinto. É teu o brilho dos meus olhos quando trago à mente a tua imagem, pequenina e frágil sempre, correndo para mim. Tua é a doçura da minha voz quando pronuncio o teu nome e a delicadeza dos meus gestos ao te segurar a mão. E também é teu o desejo sincero de que sejas sempre muito, muito feliz.

Eu agradeço a Deus por me permitir a alegria deste momento; por me ter dado o privilégio de te conduzir de volta à Casa. Então aproveito o ensejo para te devolver, item por item, tudo o que tenho guardado, como um baú fiel, em meu coração. Agradeço também pelo sorriso sincero e piedoso com que te permitas receber o humilde gesto deste velho pai falido.

Sinceramente, eu te peço perdão, minha filha, pelo tempo em que fiquei ausente e pela insegurança que o silêncio intermitente que se ergueu entre nós, como extenso muro, produziu em ti. Peço-te perdão pelos descaminhos que tomaste em busca do amor que eu nunca soube te ofertar. Mesmo assim, e apesar de tudo, eu te afirmo que o que sinto é o maior amor do mundo e que estive sempre de braços abertos para te acolher, embora não soubesse como.

Se cometi falhas foi pela imprecisão dos meus gestos, imperfeitos ainda, que não souberam me traduzir...

Ah, se eu pudesse voltar no tempo, querida, e estivesse agora em minha escrivaninha, iria escrever uma história bem diferente para mim e para ti. Escreveria noites frescas, regadas ao som do meu acordeom, para que nunca viesses a conhecer o pavor da solidão, o frio paralisante do medo e o queimor destrutivo da ansiedade. Escreveria tardes de passeios inesquecíveis, em extensos bosques floridos, para que tivesses a certeza constante de que sempre te acompanho os passos. Escreveria belas manhãs ensolaradas, repletas de poesia, para que nunca tivesses dúvida de que és muito, muito amada.

Para que não fosse preciso, filha, te escrever agora sob grossas lágrimas de arrependimento, desejando voltar no tempo para te falar de amor...

Mas porque todo fim é sempre a oportunidade de um novo começo, hoje eu volto ao mesmo quarto exíguo para te encontrar. Vasta cabeleira branca, pele curtida pela ação do tempo, tu estás cansada, eu sei. Mas eu nunca te vi tão bonita, minha filha, como agora. Acredita! Embora a idade avançada, tu ainda pareces a mesma menininha, feliz e sorridente, que corria ao bater da porta para abraçar o pai.

Como antes, vou te pegar nos braços e te conduzir ao mundo dos sonhos, como se fosses o meu bebê. Só que, desta vez, é um outro pai que estará à tua espera e é para Ele que os teus olhos doces irão se abrir quando acordares deste breve sono.

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