quinta-feira, 17 de julho de 2008

Pelas dobras da vida...

Porque o amor é feito animal silvestre, que prescinde da liberdade para crescer e se reproduzir.

Acordo no meio da noite e me mantenho em vigília, como se velasse, de alguma forma, a tua agonia. Caminhamos juntos, meu velho, como num pacto insólito, rumo à decadência...

Já te vi mais firme, cheio de um vigor e alegria próprios da tua raça. Achava graça a disposição com que sempre me recebeste. Hoje, frágil e alquebrado, tu ainda me saúdas com entusiasmo, mas não tens mais, isto é fato, o mesmo vigor de antes.

Não sei bem o que me ensinas, companheiro velho, ou para que me preparas, mas sinto que o olhar silencioso e demorado com que me observas, às vezes, deseja revelar-me algo. Talvez me fale, com conhecimento de causa, sobre a brevidade da vida; talvez queira me preparar, com admirável resignação, para dias – que não estão nem longe nem perto – menos felizes...

Não sei se o meu adeus, amigo, ou se o teu próprio, no andar natural das coisas. Só sei que caminhamos juntos para um único e inexorável fim: a deterioração física. “A velhice não favorece ninguém!”, disse o especialista que diagnosticou o mal dos teus dias como natural da idade avançada que já apresentas, dando a entender que não havia muito a ser feito em relação a ti. “Apenas aguardar”, disse-me ele; enquanto se despede o companheiro maior das minhas noites insones...

Nas horas em que passei mais sozinha, deixava o calor do seu cantinho para ir-se aninhar próximo a mim, enroscado em si mesmo, e ficar “pastorando”, vigilante e fiel, como se asseverasse com o silencioso gesto: “Agüenta firme! Eu estou aqui”.

Quero te dizer, meu amigo, que, mesmo havendo tanta diferença entre nós, foste nos tempos mais difíceis a melhor companhia que eu poderia aspirar. Ninguém mais amigo e leal; ninguém mais amoroso e compreensivo que tu. Ninguém mais paciente e que exigisse tão pouco de mim quando eu pouco tinha a dar.

Com um jeito próprio de me acompanhar, ninguém me faria sentir mais segura e protegida do que tu, nos momentos de total isolamento que vivenciei, como naquela noite em que retornamos sozinhos, eu e tu, de Recife a Maceió, pelo litoral.

Recordo-me da tua mãozinha miúda, tocando-me o braço esquerdo, apoiado à janela do carro, nas imediações de Maragogi. Ninguém mais, além de nós dois, avançava, sob o gigante céu estrelado, por aquela estrada. A despeito disso e, apesar do receio que eu não poderia deixar de ter, permaneceste firme ao meu lado, o corpinho colado ao meu braço e a cabeça voltada para fora da janela, aspirando o ar da noite.

A tua presença e a perfeita harmonia com o universo davam-me a sensação de ter alguém muito querido me segurando o braço e dizendo: “Não temas! Eu estou aqui”. Olhava as estrelas pintadas na folha negra do céu, sentindo o teu calor na minha pele, e tinha a certeza de não estar só.

Sim! Estiveste comigo o tempo todo, companheiro velho, neste e em outros muitos momentos. Por isso quero que saibas que, apesar de não te tratar com a mesma efusividade com que sempre me abraças, eu te amo a meu modo. Se, às vezes, apenas te olho pelo canto do olho, como agora, é para não macular os teus sonhos...

Mas me perdoa se te falo assim, da vida e da morte, com tanta naturalidade. É que tenho aprendido, desde muito cedo, a me despedir...

Não! Não me olha como se estivesse diante de um “deus das pequenas coisas” ou como se fosse tu a personificação imediata desse deus. Olha-me como alguém que, lidando com as perdas, se propõe a alcançar o infinito de si mesma. Pois é também contigo, meu cãozinho, que estou aprendendo a difícil, mas imprescindível, arte de conservar os afetos, deixando-os partir. Porque o amor é feito animal silvestre, que prescinde da liberdade para crescer e se reproduzir.

Por isso, meu velho, eu me mantenho em vigília e, como já fizeste incontáveis vezes, te observo em silêncio, como se dissesse: - Agüenta firme! Eu estou aqui.

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