quinta-feira, 7 de maio de 2009

A cada um com as suas obras...

Cresci vendo a minha mãe tratar com igualdade todos os que batiam à nossa porta. Minhas lembranças da infância são recheadas de personagens, que, apesar de diferentes, eram recebidos com igual respeito e solicitude, muitas vezes sendo convidados para a refeição. De lá, ninguém saía de mãos abanando, coração opresso ou barriga vazia.

A lavadeira Lindô, que era epiléptica e matava de susto os meus irmãos e eu com terríveis gritos agudos sempre que sofria mais uma crise; Ciço Babão, homem dos seus 50 anos que trazia diversas sequelas de um derrame e andava sempre urinado e sujo pelas ruas de Canhotinho; Dôra, irmã de Ciço, que era alcoólatra e tinha muita dificuldade de sorver o café quente que minha mãe lhe servia à mesa para tratar os efeitos imediatos da doença; e Dona Iaiá – uma senhora, simpática e rechonchuda, de vasta cabeleira branca, que, beirando os 80 anos, gostava de nos visitar à hora do almoço, quando aproveitava para reclamar da irmã Júlia, que, segundo ela, queria matá-la de fome – eram algumas das ilustres criaturas que frequentavam o lar da minha infância.

Dona Iaiá, na verdade, sofria de arteriosclerose e sempre esquecia que já havia comido antes de sair de casa, almoçando de novo com a gente. Contava histórias engraçadas e costumava botar a culpa no rio Canhoto (que não ficava entre a sua casa e a nossa) quando passava mais de duas semanas sem nos visitar.

Mamãe, no entanto, nunca permitiu que os filhos mangassem dela, por mais absurda que parecesse a sua conversa. Muito bem acomodada na cadeira de balanço, passava a tarde papeando com mamãe e nós nos reuníamos em torno delas, achando graça nos exageros da velhinha. Mas sempre com muito respeito! Aliás, respeito pelos mais velhos foi algo que a nossa mãe se encarregou de nos ensinar desde cedo, repetindo inúmeras vezes até que tivéssemos introjetado a preciosa lição.

Também tinha Vailá, um primo solteirão de meu pai de quem ela gostava muito, e Dona Leó, que trabalhou lá em casa durante 20 anos e depois, já velhinha, foi recolhida ao nosso lar, despedindo-se aos 80 anos, literalmente, nos braços de minha mãe. Assim como estes, outros tantos nomes ressurgem à minha mente neste momento em que sou tomada por certa reflexão...

Católica fervorosa, dentro das suas limitações humanas, procurou o quanto pôde praticar os ensinamentos de Jesus, que nos convida a amar o próximo como a nós mesmos e, assim, demonstrar a Deus – nosso pai – toda a nossa gratidão. De forma que foi com ela que eu aprendi a sorrir largo mesmo nas horas difíceis e partilhar com Deus o meu dia-a-dia. Tomei gosto por ajudar o próximo e tratar com desvelo e respeito todos os que de mim se aproximam, dos grandes aos pequeninos.

Nessa escola tão proficiente não me foi ensinada a segregação religiosa ou qualquer outra forma de sectarismo social que a ignorância humana seja capaz de criar. Nunca ouvi um comentário sequer por parte de minha mãe pelo fato de eu ter abraçado uma religião diferente da sua. Ao contrário, felicitou-me várias vezes pelas modificações que via serem implementadas no comportamento da filha.

Por isso, entristeceu-me profundamente a atitude tomada pela direção da Santa Casa de Misericórdia de Maceió, que recentemente proibiu a entrada de grupos de caridade que não professam o Catolicismo. Habituados há mais de dez anos a levar, semanalmente, uma palavra de consolo e alívio aos internos da enfermaria desse hospital, evangélicos e espíritas estão impedidos de exercitarem lá os preceitos do Cristo, procurando aliviar a dor alheia com uma palavra amiga e oração. Sendo agora uma instituição declaradamente católica, paira a dúvida no seio da sociedade: será que os irmãos não-católicos que forem visitados pelo infortúnio da doença vão poder contar com a misericórdia da santa casa?

3 comentários:

Elô Baêta disse...

Este texto me chamou muito a atenção pela sua incrível habilidade com as palavras de amenizar uma situação conflitante, lamentável: o preconceito de um hospital, que se diz "humano, em relação à religiosidade; muito triste. É decepcionante que fatos como este ainda ocorram em plena era de igualdade de direitos. Mas o desapontamento é quebrado com um delicioso resgate da infância. Que saudade, que lembrança gostosa!!!!!!!!. Vc sabe que eu faço parte da legião de fãs que acompanham a sua trajetória literária, mas esta crônica é uma das minhas preferidas.Que Deus abençoe sempre este seu talento.

Anônimo disse...

Ola Yvette, pelo que vemos a direção da Santa Casa precisa de Minericórdia mesmo. A palavra de conforto não tem credo religioso. Embora possa vir de um espirita, budista, evangélico, ou outra denominação religiosa, ela sai do coração, da misericórdia de quem a tras. Infelizmente os corações estão endurecidos, mesquinhos e sem nenhum seguimento dos ensinamentos de Cristo.
Conheci seu blog ontem, sou uma das filhas de Elza Tojal, a quem vc se refere em "Pérolas desconhecidas" em 24/07/07. Nossa mãe´é tudo isso e esse ano fará 87 anos e continua com o mesmo otimismo e a mesma alegria de celebrar a vida.
Virei sua fã, seus textos são radiantes e frescos como o amanhecer. Felicidades
Valdete Tojal

Yvette Maria Moura. disse...

pois é, meninas...
é lamentável que em plena Era da globalização - quando o mundo se mobiliza em torno da paz - uma instituição de "saúde" dê um passo atrás por pura discriminação religiosa.
quanto aos elogios, vc é suspeita para falar, Eló. a generosidade do seu coração a faz enxergar os rabiscos da amiga com os olhos da alma. mesmo assim, saiba que lhe sou grata por tanto carinho.
já vc, Valdete, não imagina a surpresa e a alegria de receber o seu recado e saber que vai virar frequentadora assídua desta página (o que muito me honra!).
por favor, endereçe o meu carinho e um fraterno abraço à pessoa maravilhosa que é a sua mãe.
são pessoas como ela que me fazem acreditar e ter esperanças no futuro da humanidade.

um grande abraço à vcs!
Luz e Paz em seus corações.