quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Revirando a casa

(foto: Yvette Moura)


Ainda era cedo quando o sol foi esmaecendo e o azul bebê deu lugar ao branco chumbo das nuvens, que rapidamente tomaram a abóboda celeste e desaguaram sobre a Terra, num inesperado temporal, um dia após os festejos natalinos.

Era a primeira semana do verão ainda quando o tempo fechou e eu, que adoro assistir a essas manifestações da natureza, sentei-me no terraço da casa de Ana – que fica no antigo engenho Mangue, na zona rural de São Benedito do Sul–PE – para ver o céu fazer a sua faxina anual.

A imaginação de poeta, aliada à criança que eu nunca permiti morrer dentro de mim, criaram logo as imagens metafóricas, que iam muito além do balouçar frenético da copa das árvores, da chuva caindo com gosto sobre o passeio de paralelepípedos, do acender surpreendente dos relâmpagos e do canto ritmado dos trovões – que alardeavam, imponentes, a queda dos raios.

Depressa, imaginei um grande palácio celeste, totalmente erguido entre as nuvens, com imensas colunas greco-romanas e escadaria de mármore branco, rodeado de arco-íris e raios de sol furta-cores,– simbolizando a morada do Grande Autor do Universo –, onde se encontravam centenas de entidades angelicais, que organizavam a dinâmica do lar paterno e faziam tudo funcionar por ali.

Naquela manhã, concluídas as festividades do Natal, os anjos arrastavam, em grupo, os enormes tapetes persas, que cobriam o piso das salas do castelo, e batiam a poeira sobre os degraus da escadaria. Nesse movimento, um barulho ensurdecedor chegava aos nossos ouvidos – simples mortais ignorantes que somos –, sendo interpretado como algo sobrenatural.

Naturalmente, nuvens de poeira se erguiam no ar, formando blocos escuros de matéria rarefeita, que, aos nossos olhos, não passavam de uma massa homogênea cor de chumbo, que encobria o céu e escondia o sol, levando a claridade do dia para bem longe.

Ao mesmo tempo, outro grupo de anjos se ocupava da lavagem do ambiente, e entornava baldes e mais baldes de água cristalina sobre os inúmeros degraus da construção para lavar a sujeira que ia se acumulando por ali.

Aqui em baixo, a água chegava em pingos ruidosos, que, vencendo as alturas celestes, vinham lavando os ares poluídos do mundo e deslizando sobre a folhagem das árvores e o topo dos prédios até serem engolidos pelas profundezas da terra.

Ao contrário do que se possa pensar, todo esse trabalho era realizado com imensa alegria, e a satisfação geral dos faxineiros celestes era expressa pela cantoria e a dança desses grupos angelicais, que, ao som de palmas ritmadas, realizavam divertidas coreografias, rodopiando com suas túnicas reluzentes.

Entre nós – criaturas com imensa deficiência para perceber as manifestações do Alto –, da dança dos anjos a única coisa que conseguíamos vislumbrar era o clarão que suas túnicas produziam entre uma rodopiada e outra e as faíscas de luz nascidas do estalar de suas mãos, extremamente energéticas, como coriscos ligeiros rasgando o nosso céu ao meio e ateando fogo no local onde caiam...

Sentada à varanda, trocando impressões com a minha filha Maya sobre a tal faxina celeste – enquanto Jade balançava na rede com a querida tia Ana –, lembrei-me das inúmeras pessoas que, àquela hora, sentindo-se profundamente prejudicadas pela manifestação da natureza, trancavam-se aborrecidas no interior de suas casas, esperando chegar a energia elétrica (que temporariamente fora interrompida) para se refugiarem na frente dos seus aparelhos televisores e anestesiarem a mente até que tivesse passado aquele dia vazio...

Poucos entenderam o que se passou por trás daquele destrambelho do tempo, quando os anjos dos céus realizaram a faxina geral, que se recomenda, para findar um ano e começar outro. Mas, reflita comigo, amigo leitor, pode alguém começar um ano novo sobre os restos de lixo que o outro deixou?

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