sexta-feira, 30 de julho de 2010

Sem medo de ser feliz

(foto: Yvette Moura)

Quando percebi que ela estava se aproximando, apressei
os passos, palmilhando bem os pés no chão para ganhar velocidade, e trilhei o rumo de casa. Mas, ao sentir seus longos dedos finos tocando cada pedacinho do meu corpo suado e a suavidade de suas carícias úmidas escorrendo pela minha face, comecei a desistir da idéia de andar rápido.

Aos poucos, fui desacelerando as passadas, relaxando os membros retesados pelo susto e me entregando ao prazer infantil de ser banhada, às nove da noite, por uma daquelas chuvas inesperadas que prenunciam o inverno.

Os pés deslizando no chão molhado; os carros passando de um lado e do outro da longa avenida; a copa das árvores ganhando novo viço; o cheiro inconfundível de terra molhada chegando cada vez mais forte às minhas narinas… Tudo em volta ficou mais lento com a chegada da chuva e eu me misturei, eufórica, à festa da natureza.

Banhos de chuva me lembram os finais de tarde da minha infância, quando mamãe aguava o extenso jardim da nossa casa, em Canhotinho, na Zona da Mata pernambucana. Como fazia com as roseiras que cultivava, ela banhava a mim e à minha irmã Lucinha com a água morninha.

A toalha quentinha vinha sempre depois, e os pijaminhas de flanela, macios e cheirosos, que nos protegiam o corpo, eram um cuidado que a mãe zelosa nunca deixava faltar. Mas o banho de mangueira era um momento de festa para nós: riamos, pulávamos e nos divertíamos a valer sob o olhar amoroso de mamãe.

Banhos de chuva também me fazem lembrar da minha adolescência, em Olinda, quando eu mergulhava nas águas esverdeadas da praia de Casa Caiada para ver os desenhos circulares que os pingos gelados da chuva faziam na superfície daquelas águas mornas, que me protegiam do frio enquanto os outros banhistas saiam em busca de abrigo.

Banhos de chuva me lembram momentos muito felizes, que ficaram marcados pelo gostinho especial de liberdade que traziam. Lembram as minhas caminhadas matinais na praia de Tamandaré; o retorno da escola pelas ruas arborizadas do Espinheiro; o aconchego da família, nas férias de julho; a caneca de chocolate quente no Festival de Inverno de Garanhuns; e o encontro inusitado entre duas almas afins, numa noite de quinta-feira, sob a atmosfera mágica do bairro de Jaraguá…

Afoitos por natureza, os amantes deram-se os braços e dançaram a noite todas sob a luz da lua, fazendo reverências e mesuras, madrugada adentro, acompanhados pela chuva, em plena rua deserta…

Depois de tão caras lembranças, pensei que não teria outros banhos de chuva com igual teor de encantamento; que não encontraria poesia em coisas tão simples, detalhes ínfimos da vida, como o brilho dos faróis fragmentado em inúmeros traços luminosos ou o barulho estalado dos pneus, pressionando o asfalto molhado e encharcando, sem reservas, tudo ao seu redor. As gotas geladas deslizando pela face, escorregando pelo canto dos olhos, caindo no abismo da boca e trazendo à língua o indescritível sabor da liberdade…

Diante da chuva, minh’alma se alegra como uma criança que vê o mar pela primeira vez. Um universo de coisas novas se descortina à minha frente puxando o meu olhar para detalhes nunca antes observados: os sons variados, as cores diferenciadas, o cheiro de terra molhada – um mundo de surpresas e possibilidades mil, que surge de repente.

Um banho de chuva, como o que eu tomei outro dia, quando voltava de uma caminhada pela orla da Ponta Verde, é a união perfeita entre as melhores lembranças que guardo e a alegria de me sentir pulsar apesar das intempéries da vida.

Em casa, esperavam-me o banho restaurador, as roupas quentinhas, o jantar revigorante e o abraço acolhedor das filhas – uma deliciosa recompensa para quem não tem medo de ser feliz.

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