quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Demora, mungangas e cacoetes

Seja condescendente comigo, amigo leitor, pois ainda não se esgotou, em mim, o quesito transporte coletivo urbano. Possivelmente, enquanto durar essa minha fase de usuária desse tipo de transporte eu estarei aqui, vez ou outra, discorrendo sobre as peculiaridades de um serviço tão necessário quanto deficiente.

Assunto não falta, você há de convir, principalmente para quem gosta de contar histórias e compartilhar experiências como eu.

Hoje, por exemplo, abordarei um ponto que, creio, todos já observaram em algum momento de suas vidas, mas, talvez, não tenham se dado conta do quanto é corriqueiro e recorrente na vida de um passageiro de ônibus...

Quando se tem a “sorte” de, por um lapso de minuto, perder o horário habitual do coletivo – como, ontem, quando vi o Ipioca passar no exato instante em que me aproximava da Avenida Jatiúca –, é preciso inventar alguma coisa para ocupar o tempo i-n-t-e-r-m-i-n-á-v-e-l até que o próximo da linha resolva aparecer. Aproveitei para observar os “colegas” e detectar os cacoetes que se desenvolve para amenizar a demora dos transportes urbanos.

Foi aí que percebi inúmeros tiques nervosos característicos desses ociosos intervalos de tempo. Abrigada atrás do poste de energia elétrica mais próximo (para fugir do sol, já escaldante àquela hora da manhã) – enquanto os outros se protegiam como podiam por trás do ineficiente abrigo e formavam uma fila indiana na linha de sombra desenhada pelo poste –, comecei a anotar cada cena que via.

Do outro lado, aguardando o coletivo no sentido contrário da via, um homem de meia idade demonstrava toda sua impaciência balançando o corpo freneticamente, de um lado para o outro, como se jogasse o peso de uma perna para a outra num intervalo de vinte a trinta movimentos repetitivos.

Durante um breve descanso, apoiava o corpo sobre um guarda-chuva tamanho família, que trazia à guisa de bengala, e revirava os olhos, cutucava o nariz e fazia munganga com a boca na mesma velocidade com que jogava o corpo, daqui p’acolá, momentos antes.

Sem se dar conta do próprio bailado, o ansioso demonstrava, com seus movimentos enérgicos, toda a sua intolerância para com essa guerra diária – que não faz vencedores nem vencidos.

Do lado de cá, um pouco mais à frente, uma moça ensaiva um balé engraçado, revezando de ponta de pé, com tremores tão impacientes quanto ritmados.

Vestindo saia longa e florida, que tremulava ao vento com o sacolejo do corpo, a moça mais parecia uma matrona raivosa aguardando o filho travesso na porta de casa, batucando o chão com a ponta do pé, pronta para lhe dar uma sova; ou, o que é pior: alguém muito apertado, que não vê a hora de entrar numa das cabines de um banheiro público.

À chegada do “meu” ônibus – comemorada efusivamente pelo senhor de olhos claros, barba branca e pele curtida do sol, que aguardara quase o mesmo tempo que eu –, não contive a alegria de encontrar, de novo, o cobrador sonolento da primeira crônica que deu origem a esta série (lembra?).

Para minha surpresa, a sua disposição era a mesma do outro dia: lábio inferior arqueado frouxamente, abria com grande esforço os olhos pesados de sono a cada estancada brusca do motorista – apenas o suficiente para receber a passagem dos pagantes e liberar a catraca, que dava acesso ao corpo do veículo.

Afora isso, era tomado de um torpor incontrolável, que lhe amolecia o corpo e o deixava inteiramente à mercê dos solavancos da estrada.

Como ele, e os passageiros destacados acima, também eu devo estar desenvolvendo manias e cacoetes nessas longas esperas, que alguém já pode estar observando.

Como o senhor corpulento, que encontro quase todos os dias, sentado sobre o assento do abrigo: já percebi que ele acompanha, com olhos de carneiro, todos os movimentos meus até chegar atrás do poste. O que pensa sobre mim eu não sei...

2 comentários:

Anônimo disse...

É isso aí, companheira. Acredito que só haverá melhora nesse trânsito caótico se esse sistema público de transporte coletivo for tratado com mais seriedade, que tenha mais respeito ao público em geral, mas não é só as empresas de ônibus, não, é o poder público que tem que oferecer conforto nos terminais e paradas, em nosso caso mais sombras no verão e abrigos no inverno, além de uma porção de outras coisinhas como Educação, Saúde, Cultura, Dignidade… ao povo. Adorei seu posicionamento existencial, companheira. Coisas da vida. Que bom que você se integra e íntegra denuncia uma dor pública que parece não ter cura. Clap-clap-clap-clap (aplausos). Rsss

Lula Castello Branco.

Anônimo disse...

Yvette,

Como não estamos mais no mesmo horário vai via email...kkkkkkkkkk
Adorei a crônica de ontem [em O Jornal - 24/11]...
não estou acompanhado a série, pois não peguei a primeira...mas adorei e ri muito!!!!!Tava engraçado!!!


Beijo,

Fabyane Almeida