quinta-feira, 5 de maio de 2011

Eu a caminho

Eu, que não estava nem pensando em sair de casa hoje, não planejava ir à praia ou fazer qualquer outro programa externo e, embora não durma muito, queria mesmo era ficar um pouco mais na cama e preguiçar até cansar da ausência de compromissos, confesso que estou adorando esse friozinho que me alcança dentro de casa.

Porque adoro esta época do ano, que me remete a lembranças muito caras, e me convida ao recolhimento e ao trabalho intelectivo. Quando é possível, como nessa manhã de domingo – o descompromisso decretado oficialmente –, sento e escrevo, voltada para a janela, que me abre as vistas para os prédios da vizinhança desenhados sobre um céu de chumbo.

Gosto de ouvir o percurso da chuva até o choque brusco com o chão e o som característico dos carros esmagando a água acumulada, que jamais se submete à força bruta. Gosto do cheiro de terra molhada que me invade as narinas e do frio que corta os ares em dias assim: ultrapassando as camadas adiposas de pele até ameaçar trincar os ossos e ser arrefecido por um agasalho quentinho.

Gosto de olhar o céu e me perder no horizonte – a linha borrada pelo cinza-chumbo –, permitindo que o dia comece meio molenga, sem a rigidez da semana corrida, que dita horários e compromissos inadiáveis. Assim como chegar a casa após a agenda cumprida e relaxar na rede, já alimentada e vestida com roupas macias e limpinhas...

Mas esse prazer tem limites porque logo a consciência assoma e me pergunta inquiridora:

- Quantas pessoas você conhece que podem se dar ao luxo de curtir assim um dia de chuva?

- Realmente bem poucas... Respondo, entristecida.

- A dor que dói no outro deve, sim, incomodar a ti também – educa a consciência, vigilante e amiga.

Então eu me pergunto: - Mas o que posso fazer para amenizar o frio de alguém, aliviar o seu cansaço, extinguir momentaneamente a sua fome, sem lhe aprisionar a uma situação viciosa de miséria e comodismo ou ferir a sua dignidade humana e o seu amor próprio?

- Se desejares de fato – responde –, encontrarás o caminho. E assim os dias de chuva serão mais bem aproveitados e igualmente poéticos para ti e para mais alguém. Um prato de comida, um agasalho, um abraço, uma palavra amiga, a tua prece sincera: tudo é ação no bem.

- Não te esqueças – ressalta diligente – que as tuas são as mãos do Criador estendidas ao menor dos Seus filhos. Em verdade, a dor só persiste enquanto há resistência ao amor. Mas o amor é irresistível...

Olho pela janela e as nuvens ainda cobrem o céu, embora já esteja claro. É verdade! O sol brilha para todos – constato. Então levanto, reconfortada pela bela lição matinal, e vou cuidar do que está ao meu alcance agora: agradeço por mais um dia neste aprazível Planeta, peço pelos irmãos atingidos pelas chuvas nesses últimos dias e vou fazer um café com cuscuz bem quentinho para as minhas filhas, que ainda dormem embaladas pelo frio e os seus sonhos juvenis.

Como diz o sábio, a evolução do homem é urgente, mas não tem pressa. Porque Deus quer que alcancemos a plenitude com os próprios pés.

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