quinta-feira, 19 de outubro de 2006

A vida na pedreira

Cresci ouvindo sofridos desabafos de minha mãe. Entre um suspiro e outro, concluía seus relatos com o que se tornaria uma marca para as minhas lembranças da infância: “É, minha filha, a vida é uma luta!”, dizia ela, entre austera e melancólica.

Confesso que por muitos anos não compreendi direito o que queria dizer a frase de minha mãe, mas refletia sobre ela sempre que me ressoava à mente. Passadas décadas, tristezas e alegrias também se acumulam em minha bagagem, inclusive a saudade de minha mãe. Imagino então, o quanto lhe pesava a vida, em alguns momentos, tendo perdido a própria genitora aos três anos de idade.

De fato, viver não é tarefa fácil para ‘seu ninguém’. Não é à-toa que a passagem terrena é descrita pelos mais evoluídos espiritualmente como “apenas um dia de trabalho em relação à Eternidade”. Como a metáfora indica, não vimos aqui para ilusões, embora seja nessas terras áridas que construiremos a tão sonhada felicidade.

Há algumas semanas, estive em um pequeno distrito de Marimbondo, na zona da mata alagoana, para registrar o trabalho semi-escravo a que são submetidos os funcionários das muitas pedreiras daquela região. O ofício pesado, o sol causticante, a vida dura como as rochas (que eles transformam com destreza em paralelepípedos, a custa de muita força, suor e mutilações) iam despertando em mim profundas reflexões, à medida que registrava as cenas com a câmera fotográfica.

A maioria está ali desde os dez, doze anos, levados pelo próprio pai para ajudar no orçamento da família. A pele grossa, as mãos calejadas, o olhar taciturno, aparentam bem mais idade do que na verdade têm. Quanto mais velhos, mais calados são; mais voltados ao ofício – conscientes de que cada dia vale a produção de suas mãos.

Depois de um breve relato sobre seu dia-a-dia, um ou outro comentário de insatisfação, os homens da pedreira corriam de volta ao trabalho. Olhos fixos na rocha, movimentos automáticos, seus semblantes em vários momentos lembravam o olhar de minha mãe...

Talvez fosse a isso – a produção de cada dia – que se referia o Mestre de Nazaré, quando convidava os corações humanos a não se preocuparem demasiadamente com o dia de amanhã. “A cada dia com o seu mal”, alertava o Cristo, sinalizando que a realidade dura da vida na terra macera o corpo, quase sempre, mas lapida a alma.

No intuito de cobrar das autoridades que façam a sua parte, com relação àqueles trabalhadores, a matéria foi publicada em página dupla com várias fotos feitas por mim. Mas confesso que voltei à casa, aquele dia, um tanto quanto “sufocada” com a vida sofrida daquela gente que, curiosamente, habita um lugar tão bonito, a começar pelo nome: Mata Verde.

Olho para os lados e vejo o quão privilegiada sou, em relação a tantos. Saúde, família, emprego, moradia são elementos concretos em minha vida que contribuem muito para o meu bem estar físico e mental. Mesmo assim, como acontece a muitos, também sou acometida, vez por outra, de certa melancolia...

Nesses momentos – em que a vida parece pesar mais e o olhar se perde para além do horizonte – eu lembro da frase de minha mãe e me esforço para seguir adiante corajosamente como ela fez. Desde Maribondo, eu não esqueço os homens da pedreira nem o sol causticante que lhes fustiga a pele, diariamente, forçando-os a permanecerem em movimento. Percebo, então, o quanto aprendi com eles...

É, minha mãe, a vida é mesmo uma luta! Mas uma luta santa. E as pedreiras em que nos sentimos escravizados, muitas vezes, nada mais são do que o cadinho da alma nos convidando a transformar verdadeiras rochas de orgulho, egoísmo e vaidade em paralelepípedos, muito bem talhados, de humildade, solidariedade e amor.
@ para o povo de Mata Verde, com muito respeito. E para minha mãe...

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