terça-feira, 29 de maio de 2007

Breves anotações sobre o exercício lúdico do existir

Enquanto a mídia espalha aos quatro ventos as denuncias de corrupção exercida em longa escala no mundo dos adultos, eu crio um caminho paralelo e convido os leitores a percorrer a pureza do universo infantil.

Porque já tem gente demais falando sobre as práticas indecentes de alguns que só diminuem e enfeiam a condição humana...

E corro aqui o enorme risco de provocar uma disputa ainda maior do que a que normalmente já existe entre as minhas filhas, mas não posso deixar de falar sobre o hábito peculiar que minha primogênita tem desde a mais tenra idade: o hábito de contar histórias.

Acredito que Maya entenderá este gesto, afinal, ela também me inspira desde os primeiros dias de vida: já lhe compus uma canção, escrevi vários poemas, tirei inúmeras fotos dessa bela menina (que puxou à mãe, é claro) e já publiquei aqui um dos textos mais bonitos que escrevi em sua homenagem: Crônica dos doze anos.

O problema é que são tão competitivas entre si, essas minhas filhas, e tão diferentes também, que, por mais que eu faça, em se tratando do meu amor, elas nunca parecem satisfeitas nem dispostas a dividir uma com a outra. Coisas de irmãos!

Pois bem. Como estava dizendo, mesmo correndo esse risco, eu vou escrever sobre a mania que Jade tem de contar histórias, digo estórias, e cada uma mais estrambótica que a outra. Como as que ela inventa para explicar, por exemplo, a origem do nome das coisas. “Mãe, sabe como surgiu a palavra biscoito?” Começa ela, enquanto devora alguns exemplares dessa deliciosa “invenção”.

E não pense o leitor que exista alguma lógica, ou que haja um estudo prévio, uma pesquisa, para embasar o que quer que ela venha a dizer. Não! Nenhum cunho científico, filosófico ou moral tem as suas estórias. Ela apenas imagina e pronto.

Seu prazer é criar os detalhes: quanto mais absurdos melhor. Para provocar o nosso riso, provavelmente. Mas fala bem séria. Quanto mais improváveis forem os fatos que ilustram os seus contos, mais veracidade ela lhes imprime.

E se expressa como se acreditasse piamente nas próprias palavras, sem dar qualquer importância à incoerência ou às inverossimilhanças que seus relatos possam apresentar. Fala bem compenetrada, olhando para longe, como se visualizasse cada palavra que pronuncia.

- Mãe, tu sabes por que acontecem os tornados? Começa logo cedo para movimentar o café da manhã, preguiçoso e sonolento, para desespero de Maya, que tem sempre a sensação de estar atrasada.
- Eles são provocados pelos americanos, que se alimentam de muita besteira e ficam obesos. O espirro deles é que dá origem aos tornados (e lá vêm as explicações!).

Por pouco a menina não se levanta para demonstrar como é que o fenômeno ocorre. “Também é o excesso de peso deles que provoca os terremotos”, afirma. “Cada salto é um abalo!”, acrescenta, dando rasgo à imaginação.

Isso quando não inventa de contar estórias de Troncoso, ou os contos de fadas clássicos, ao seu cachorrinho. Todos eles, é claro, adaptados ao mundo animal. Sentada à porta do quarto, deita a cabeça do Ping em seu colo e começa a narrar as aventuras do “Cão de Botas”, do “Pequeno Cão Polegar”, da “Cadela Borralheira”, do “Cão Belo Adormecido”, e por aí vai. Isso sem descuidar do cafuné na cabeçorra do bicho (que fica abrindo e fechando os olhos beeem de-va-gar...) e da língua apropriada à sua compreensão: o au-auês (que fala com maestria).

De onde me encontro, observo sorridente o prazer com que minha filha se entrega a esse jogo lúdico com o seu fiel companheiro. Prazer que os adultos e a mídia têm roubado, cada vez mais cedo, dos infantes: o de soltar a imaginação no exercício lúdico do existir.

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