quinta-feira, 6 de novembro de 2008

A luta santa de cada dia...

“A necessidade é o remédio para os tímidos, assim como a culpa o é para os omissos.”


- Mas o que o senhor quer que eu faça exatamente? Perguntei mais uma vez ao homem à minha frente, acompanhado de duas crianças, que implorava ajuda.

Incomodada com a cena embaraçosa que protagonizava, percebi que minhas palavras já saíam num tom alterado, mas o que podia esperar alguém que se prostrara à minha frente como se eu fosse a única alternativa contra todos os seus problemas exatamente no meio do meu trabalho?

- Pelo amor de Deus! Repetia ele, me acompanhando, enquanto eu caminhava entre os manifestantes tentando captar todos os ângulos daquele protesto de trabalhadores rurais, que também reclamavam atenção.

Insistente, ele me seguia os passos, exigindo providência para os males que o afligiam. Desempregado, tinha a família passando fome e sofria com as seqüelas de um derrame e as limitações provocadas pela epilepsia, cujas crises só podiam ser evitadas com remédio controlado. Os meninos, aparentando 4 e 6 anos, seguiam-nos, expectantes, como se acreditassem, de fato, que eu poderia fazer alguma coisa por eles.

Dentro de mim uma aflição crescia, fazendo-me sentir impotente diante da situação que me havia surgido, como que “por acaso”. Estava sem dinheiro e, além do mais, não havia conseguido fazer com que a Assistência Social do Palácio o atendesse. "Volte amanhã!" foi tudo o que ouvimos do militar que guardava o prédio, por trás do portão de ferro, fechado a correntes.

Acostumado a dar respostas iguais àquela, provavelmente, voltou-se rapidamente, sem qualquer alteração, deixando-me tão desolada quanto o homem que me acompanhava. O que mais poderia fazer? Perguntava a mim mesma sem encontrar respostas para aquele que depositava em meus ombros toda a esperança de solucionar os seus problemas...

- Compre um lanche pra mim! A gente ainda não comeu nada hoje... Falou, com olhos súplices, o pai de família.

Olhei ao redor e vi uma barraquinha de cachorro-quente, ao tempo em que recepcionei na mente uma boa intuição. Assegurando-me de que o ambulante me venderia fiado até a chegada do carro que viria me buscar, fiz o pedido: - Dois cachorros-quentes (eram enormes!) e três copos de suco.

Convidei-os a se sentarem e fiz o mesmo, aproveitando para conhecê-los um pouco mais. Então vi o homem sorrir satisfeito, olhando seus filhos saciarem a fome, assim como ele próprio. Respondia às minhas perguntas animado, como se estivesse diante de uma velha amiga.

Ao final pediu mais um copo de suco e se despediu, agradecido, fazendo uma reverência com o chapéu roto que trazia à cabeça. Levantou-se, segurou a mão dos filhos e seguiu na sua luta diária, todo satisfeito. Finalmente parecia dizer: “Agora sou gente!”.

Voltei aos trabalhadores sem-terra e vi o Homem em luta novamente – ali, a luta coletiva –, mas eram novos os olhos que eu tinha para aquela gente que ocupou a Praça dos Martírios (seria uma metáfora?) entoando seus cantos e gritando palavras de ordem. Com pedaços de pau nas mãos, bandeiras e estrovengas, eles chamavam a atenção dos transeuntes, mais do que do governo, e provocavam sentimentos controversos na população. Mas a luta coletiva me parecia menor do que a daquele homem, que eu nem sabia o nome...

Terminado o trabalho, só então foi que refleti sobre o quanto me custou ajudar aquela família: três reais apenas e um pouco de boa vontade; nada mais que isso. Dar a eles atenção e companhia enquanto comiam foi uma opção minha para tornar menos humilhante aquele ato “mecânico”, doando, verdadeiramente, algo de mim.

Naquele dia, em meados de 2004, quando flagrei a luta desigual da fome contra a indiferença, eu aprendi que precisamos combater constantemente o egoísmo que nos habita o íntimo porque a necessidade é o remédio para os tímidos, assim como a culpa o é para os omissos.

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