quarta-feira, 11 de março de 2009

Para dizer adeus...

Ele andava cansado nesses últimos meses. Dormia pouco, se alimentava mal e tinha sonhos chochos. Mas havia nutrido a alma recentemente, quando esteve na casa dos pais, no Recife, e resgatou velhas imagens dos seus amores primeiros: a avozinha querida, os dias felizes da infância, as primeiras brincadeiras no palco – em que vestia fantasias e ensaiava o que seria a sua marca registrada entre os amigos e familiares: a arte de fazer sorrir.

Como um bom palhaço – no sentido mais sublime do termo –, arrancava as gargalhadas alheias escondendo as próprias dores.

No final do ano passado me ligou certa noite e pediu para que eu fosse ao seu encontro. Cansada, depois de um dia inteiro de trabalho, perguntei se não podia deixar para o dia seguinte. “Por favor, nêga, só um pouquinho. Eu estou precisando muito conversar!”, disse-me em tom de súplica. E eu atendi de pronto o amigo com quem sempre pude contar.

Dentro do carro, próximo ao lugar em que estava morando, me confessou estar mal. “Pra você, eu digo, nêga! Pros outros eu não tenho coragem, mas pra você eu assumo: tô mal!”, repetia confiante, provavelmente porque já me socorrera em momentos assim.

Naquela ocasião, enquanto dividíamos o saco de pipoca que ele havia comprado para amenizar a minha fome, me pediu para escrever um texto sobre os descaminhos do amor: “Escreva algo como ‘a pessoa que traz o amor e momentos lindos para a vida da gente é a mesma que destrói tudo e toma de volta o amor que trouxe, com a mesma intensidade’”. Estava magoado, sofrido: pássaro ferido no peito.

Falei-lhe sobre o “autoamor”, mas ele parecia não ouvir. Trazia o pensamento fixo no “desamor” a que se entregara e insistia para que eu inserisse no texto as palavras “concretizar”, “sonho”, “pesadelo” e “esperança” – palavras que, com certeza, tinham forte significado para ele naquele momento.

Sentindo-se roubado de si, infelizmente, parecia ter entregado também a sua alma para quem o roubou. Com ela entregara o poder de materializar a alegria no semblante alheio, o desejo de viver outros sonhos, a capacidade de sair do pesadelo em que mergulhara e a vontade de acalentar a esperança em seu coração...

Os médicos diagnosticaram câncer – que já estava num processo avançado quando foi descoberto – após o mal-estar que o vitimou. Mas tenho para mim, pela pressa como tudo ocorreu, que ele morreu mesmo foi de “desamor”. Como todo palhaço, um dia desistiu de sorrir, sentindo profundo cansaço. Acreditara, talvez, que as suas brincadeiras já não tinham mais a menor graça...

E eu, que só soube da sua partida dias depois, pergunto: Quem há de cantar para mim pelo telefone, quando eu perguntar: “E por falar em saudade, onde anda você? Onde andam seus olhos, que a gente não vê?”. Onde estará a voz, melodiosa e rouca, que sempre impulsionava a minha autoestima, respondendo do outro lado da linha: “Você é isso, uma beleza imensa. Toda recompensa de um amor sem fim. Você é isso, uma nuvem calma. No céu de minh’alma, é ternura sem fim...”?

Ah, querido, não sabes o quanto eu gostaria de poder te ligar agora para declamar, sem demora, o poema Minha Mãe, de Vinícius de Morais. Eu falaria baixinho para não machucar os teus ouvidos nem te interromper o sono reparador. E enviaria, nesses versos, o meu mais terno abraço e o imenso amor fraterno que soubemos construir. Eu te diria calma e simplesmente:

“[...] — Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão, que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu”.


@ para Sávio Bezerra.

3 comentários:

Fabián Muniz disse...

¡Qué hermoso poema el último!
Saludos!!!!!

Tayana Moura disse...

Emocionante a crônica para o Sávio! Não poderia ser escrita de outra forma. E que ele, com todo seu encanto e "palhaçadas" transborde o céu de alegria! Vai em paz, Sávio.

Anônimo disse...

Etinha!!
Fiquei super triste, com a partida do nosso querido Sávio.
Lembrei de um niver seu, ele tocando violão...saudades.
bjos e manda noticias.

Nieta Moura.