segunda-feira, 8 de junho de 2009

A divina morte de todos os dias

E eu que, por medo de adormecer, fiquei lendo Clarice até a vida parecer um sonho distante, nem vi quando as minhas pálpebras começaram a pesar devagarzinho deixando a lucidez escorrer por entre os meus dedos, dissolver pelo canto dos olhos, deslizar pelo meio das pernas, correr por toda extensão dos meus braços até sair de mim completamente numa sangria sem remédio.

Quando dei por mim, já estava ganhando os espaços imponderáveis da morte diária, em que a alma deixa o corpo parcialmente e vai visitar os seus afins, avistar lugares outros, pessoas queridas, cuja distância e localização espacial não permitem, em estado de virgília, a alegria dos reencontros...

Pensando assim, morrer não me parece tão mau. A diferença entre a morte e o sonho é que a primeira não nos permite acordar de volta no corpo. Morrer é mergulhar de vez no inefável regaço da vida, onde não existe nem princípio nem fim: viver é o meio – o único meio possível!

E não há remédio para isso a não ser se entregar ao momento presente, como se esta fosse a única maneira de se manter acordado. Como bem disse Clarice*, "o prazer de estar viva é o de adormecer. [...] Minha alma está enfim entregue. Nada mais tenho a entregar. Nada me segura mais: vou. Vou para a beatitude. A beatitude me guia e me leva pela mão. A beatitude em vida".

*(Aprendendo a viver/Clarice Lispector - 2004)

Nenhum comentário: