quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Como la cigarra...

(foto: Yvette Moura)

Parecia um sonho! Eu descia as escadas lentamente, câmera em punho, os olhos fixos no palco, enquanto as cortinas vermelhas iam se abrindo no mesmo compasso e, pouco a pouco, revelavam o que estava por vir. Uma manta rubra jogada sobre os ombros, vestida de negro, embora lhe pesassem os anos (73), forçando-a a permanecer sentada em uma poltrona durante o espetáculo, a força daquela mulher a tornava gigante.

Não demorou e os primeiros acordes foram saindo dos instrumentos, habilmente manejados pelos músicos que a acompanhavam, e, quando a sua voz inconfundível ressoou pela imensa caixa acústica repleta de fãs, eu estanquei ali mesmo, a poucos metros do palco, para ouvir uma das minhas canções preferidas...

“Tantas veces me mataron, tantas veces me morí, sin embargo estoy aquí resucitando. Gracias doy a la desgracia y a la mano con puñal, porque me mató tan mal, y seguí cantando”, bradou “A Voz da América” nas dependências do Teatro Gustavo Leite, interpretando como ninguém a belíssima canção da também argentina María Elena Wash, há quase um ano, em 26 de novembro de 2008.

Profundamente emocionada, acomodei-me em um daqueles degraus e acompanhei o coro que se fez, repetindo o refrão.

Mudei algumas vezes de lugar para explorar outros ângulos – tirei mais de 300 fotografias –, soltei a voz nas canções mais conhecidas, joguei os braços para o alto diversas vezes, balançando com a música como se fosse a folhagem de uma palmeira vibrando com a brisa, e me esqueci do mundo lá fora durante todo o tempo em que a tive ali, tão perto, cantando para mim.

Mas, quando a vi levantar-se da cadeira com grande esforço para comandar a plateia com a canção que imortalizou a sua voz aqui no Brasil, gravada com Milton Nascimento na década de 70, eu não consegui conter a emoção. Coloquei a máquina à tira-colo e cantei com ela enquanto as lágrimas caíam pela minha face afogueada, acompanhando o bailado lento, mas firme, suave e enérgico de Mercedes Sosa.

Braços para o alto e os pés sendo arrastados de um lado para o outro, com um largo sorriso nos lábios e um brilho intenso nos olhos, era a mesma artista vigorosa de outrora que estava ali. Aquela que hipnotizara multidões com a sua voz vibrante e os seus fortes signos latinos a entoar, mundo afora, canções de forte cunho social e político, que também falavam do seu amor à vida e ao povo sofrido, numa incansável luta libertária pelos oprimidos.

“Maria, Maria, é um dom, uma certa magia; uma força que nos alerta”, cantavam os maceioenses, que, igual a mim, naquela noite, transbordavam de alegria e de gratidão àquela mulher guerreira, reconhecendo nela a própria personificação da mulher do terceiro mundo, que, como diz a música de Milton Nascimento e Fernando Brant, mistura a dor com a alegria e possui a estranha mania de ter fé na vida.

No último domingo, 4 de outubro, A Voz da América se calou definitivamente e o mundo latino chorou a partida – prematura – da sua maior representante. Para mim, ficou a alegria de poder ouvi-la pessoalmente e a eterna gratidão à querida amiga/benfeitora Silvana Valença, que possibilitou a minha presença naquele inesquecível evento. Para a minha alegria ser ainda maior, soube que as fotos que eu tirei foram enviadas para a própria Mercedes, que continuou em turnê pelo País.

Como a cigarra, tantas vezes cantada pela diva da América Latina (carinhosamente chamada de La Negra), eu não tenho dúvida de que ela seguiu cantando para o Mais Além. As diversas lutas que travou consigo mesma, em seu processo evolutivo, somadas à luta maior pelos direitos humanos dos menos favorecidos, devem tê-la dotado das asas necessárias para o derradeiro voo “Cantando al sol, como la cigarra, después de un año bajo la tierra, igual que sobreviviente que vuelve de la guerra”.

@para Mercedes Sosa - uma singela homenagem.

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