quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

À moda brasileira

“A casa era uma casa brasileira, sim; um pouco portuguesa, um pouco pixaim”...
Ressoa a voz do poeta aos meus ouvidos, enquanto, me deixo despertar lentamente, atendendo ao apelo do galo e o gorjear dos pássaros.

Aos poucos, vou abrindo os olhos e os deixando correr pelo ambiente de paredes altas, camas largas e lençóis bem alvos, enquanto um turbilhão de sentimentos me invade a alma ainda nas primeiras horas do dia.

Iluminada pelas réstias de sol, que atravessam as frestas do telhado fazendo desenhos de luz pela casa, eu deslizo os olhos ainda moles pelas linhas da porta – talhadas sem muito adorno e pintadas de azul-royal – e sigo perscrutando o ambiente até me perder num emaranhado de pensamentos, saudades e memórias várias – que não são minhas, mas, de repente, me invadem, como se quisessem ser libertadas...

Toda vez que venho aqui, sou tomada por essa sensação de aconchego e acolhimento impressionantes, que me faz sentir plenamente à vontade e segura. Como se a casa fosse feita de grandes braços macios, que se esticam e me enlaçam, afirmando suavemente: - Que bom que estás aqui!

Numa espécie de sonambulismo consciente, eu me levanto e saio pelo corredor – o friozinho do piso na sola dos pés – e deslizo pelos outros cômodos da casa, toco a mobília antiga, observo os detalhes e paro diante das fotografias, que inevitavelmente contam a história desse lugar.

Quantos já passaram por aqui? De quantas energias estão impregnados esses ambientes? As lembranças dão conta de um tempo muito antigo, perdido nas brumas do passado, em que famílias se entrelaçaram numa impressionante relação de amizade. As imagens falam de um clã numeroso, oriundo de Coruripe, que vinha com frequência a estas plagas para temporadas na praia...

Aos poucos, as personagens foram mudando, na renovação natural das gerações. Mas alguns móveis, os pratos de ágata, as fruteiras do pomar, a disposição das redes, os lampiões do alpendre, as cadeiras de balanço, muita coisa ainda permanece à moda de outrora. A cama da matriarca, por exemplo, ainda está lá...

Até onde a memória de minha amiga se estica, sabe-se que a construção pertenceu a um certo Domingos Félix, amigo do tabelião José do Nascimento Baêta (seu avô), que prestava pequenos serviços e favores ao primeiro. Casado e sem filhos – e provável detentor de alguns dos melhores atributos do nome que ostentava (de origem portuguesa, segundo a honomástica) –, o senhor Domingos costumava convidar o amigo para passar os finais de semana com a família em sua casa.

Em carro de boi ou à pé pela areia da praia, os Baêta visitavam os Félix com freqüência, na década de 30, acompanhados dos doze filhos. Bernadete, Hildete, Anete, Luzinete, Ivete, Ivonete, Vandete, assim como Francisca, Maria José, Ernani, Joaquim e Herman, guardavam alegres lembranças desse convívio fraternal. Nos dias finais, como não tivessem herdeiros, os Félix deixaram o solar para os Baêta e seus descendentes – que ainda hoje usufruem do presente em clima de harmonia e fraternidade.

Com vários cômodos e acomodações confortáveis, rodeado por amplo terraço e um pomar cheio de fruteiras, o Solar dos Baêta é uma atração a mais na praia de Duas Barras. Uma construção arejada, que convida a horas de meditação e boa prosa, acompanhada de um bom café preto e a presença amiga da nossa anfitriã.

Na ausência da tia Vanda, preocupada excessivamente com etiquetas e convenções sociais, Elódia (que tem o mesmo nome da avó) me convida a rememorar os prazeres da infância interiorana, comendo nos pratos de ágata e devorando mangas-espada ali mesmo, no meio do pomar. Impossível não me lembrar dos versos de Geraldinho Azevedo, que poetizam a feliz mistura da família brasileira – que conserva hábitos da maloca, fala a língua d’além mar e tem sangue pixaim correndo nas veias...

Um comentário:

Elô Baêta disse...

Que maravilha, Gaviota! Jamais li ou ouvir alguém falar sobre aquela histórica casa dos Baêta - meio portuguesa, meio pixaim, decididamente, uma boa metade de mim -,dando-lhe vida, muitas vidas, a minha vida...; falando por ela, dizendo cada sentimento que tenta expressar em cada um dos seus cômodos. Ela realmente é tudo isso e, sem dúvida,"abre os braços quando nela chegam pessoas muito queridas, dizendo que bom que estás aqui". Exatamnente como faz com você, sempre que a ela der o prazer de por algum tempo nela ficar. Deus abençõe sempre a tua sensibilidade de perceber em simples lugares e em pequenas coisas e gestos nobres sentimentos. Beijos