quarta-feira, 27 de setembro de 2006

O mapa de Cimbres

Quando eu era estudante de Comunicação, em Recife, lá pela década de 90, aventurei-me algumas vezes com um colega de turma para exercitar o ofício de jornalista. Ele, escrevendo os fatos; eu, registrando as imagens. Foi um tempo bom aquele, quando nossa única preocupação era ter o trabalho publicado nas páginas de algum jornal local...

Estava mais uma vez empreendendo uma daquelas viagens pelo interior do velho Paranambuco quando, de repente, me deparei com um mapa geográfico desenhado na face de um anjo. Era uma moradora do povoado de Cimbres - comunidade indígena que fica no alto da Serra do Ororubá –, em Pesqueira, município do sertão pernambucano. E era, provavelmente, a mulher mais idosa daquele vilarejo esquecido e empoeirado.

Naquela tarde, a matriarca debruçara-se à porta de sua casa, olhos bem lúcidos, para acompanhar a movimentação dos índios que iam e vinham numa marcha contínua e lenta pela rua principal do lugar.

Mas, antes, é bom que se esclareça que, uma vez por ano, no período junino, o povoado de Cimbres ganha destaque e é visitado por turistas de toda a região, que vêm prestigiar a tradicional Festa da Madeira – homenagem que os Xucurus fazem à Nossa Senhora da Montanha, padroeira do lugar, ou nossa mãe Kumain, como eles chamam. Desde cedo, os pele vermelha vão à mata pegar lenha para preparar a grande fogueira de cerca de três metros de altura que queimará até de madrugada, enquanto eles dançam o Toré, apoiados em seu jupago, numa cantoria cheia de significados.

Pois bem! Ia eu no meio da marcha, capturando com a minha Yashica FX-D as imagens mais pitorescas do ritual, quando me deparei com aquela figura lendária. Lenço preto na cabeça por cima de um gorro esmaecido e frouxo que quase lhe cobria a face pequena e magra, os olhos caídos e os sulcos profundos no rosto daquela mulher denunciavam a idade avançada. Usava um xale preto em torno do pescoço e da cabeça e mantinha os braços cruzados em cima da porta tosca, tão marcada pelo tempo quanto ela própria.

Estava tão absorta com o movimento da rua que não percebeu quando me aproximei. Parei alguns metros à sua frente e fiz uma foto sem chamar a atenção, para garantir a imagem. Na intenção de ressaltar-lhe os vincos profundos da face, cheguei mais perto e pedi para lhe fotografar. Ela me olhou por um instante, entre surpresa e assustada, e negou o meu pedido, dizendo-se muito feia.

Carinhosamente lhe sorri e asseverei: “A senhora é linda!” Porque era assim que eu verdadeiramente a via - uma figura ímpar que inspirava força, beleza e dignidade. Em cada ruga, uma estória pra contar; em cada gesto, uma lição de vida.

Ela apoiou-se melhor sobre a porta e gritou para o filho (um senhor de uns cinqüenta anos que se encontrava sentado mais adiante na calçada): “Está vendo, José, arrumei quem me achasse bonita!” E prontamente empertigou o corpo franzino, olhou-me profundamente por debaixo do xale e sorriu o seu sorriso mais bonito, arqueando levemente os lábios para o alto.
Sem perda de tempo registrei a imagem. E aqueles olhos miúdos, cheios de um brilho muito especial, seriam para sempre imortalizados pelas lentes sutis do meu coração...
@para Ricardo Japiassu, que se aventurou comigo muitas vezes
pelo interior pernambucano...

Um comentário:

Everson Belo disse...

Opa, olha eu por aqui... Bem, não sei qual sua idéia, mas... se puder entrar em contato por e-mail... eversonvb@msn.com

Abraço forte!

Ass.: Everson